Ely Talyuli Júnior

Advogado com ampla experiência em defesa de corporações empresariais. Doutorando em Direito Constitucional. Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Milita atualmente junto aos Tribunais Superiores em Brasília. Ex-professor universitário. Ex-membro da Comissão de Direito do Trabalho e de Direito Desportivo da OAB-DF. Autor e Coautor de livros jurídicos e literários.

Inteligência Artificial e Justiça Humanizada

Com a evolução das ferramentas de IA generativa como o ChatGPT ou o Gemini, textos com coerência, fluidez, elegância e até certa autoridade podem ser produzidos por máquinas em segundos. A linguagem ampliada pela IA chegou a quase todas as áreas: do marketing ao jornalismo, da literatura à produção científica. Mas o que acontece quando ela entra num universo ainda mais sensível da vida social como o da Justiça?

A despeito de existirem novas tecnologias de volumes de dados através de extração de padrões e oferecimento de suporte técnico à decisão jurídica, a crítica humana é o grande diferencial para a implantação de ferramentas de decisão na esfera judicial, na medida em que é uma pessoa (o juiz) quem terá a capacidade de adequar os fatos à luz da legislação e dos valores fundantes da sociedade moderna.

A linguagem artificial pode até redigir textos interessantes e simular raciocínios com lógica admirável. Para fins de interpretação de conflitos (frutos de efeitos sociais mutáveis e situações inovatórias), não é confiável ainda a resposta dada pela máquina tecnológica.

No âmbito do Poder Judiciário trabalhista, já estão em aplicação ferramentas como o Chat-JT, o Galileu, o Falcão e o Monitor do Trabalho Decente. São tecnologias que o subsidiam na esfera da eficiência e inteligência analítica, porém não são capazes de substituírem completamente a ponderação do julgamento humano sob o ponto de vista moral e ético, justo ou racional. Enquanto a IA processa a linguagem de forma distinta da cognição humana, mediante reconhecimento de padrões impostos, corrigindo desvios, ela é insatisfatória a captar integralmente o sentido, pois não detém horizonte normativo para resolver dilemas morais nem sopesar justiça ao caso concreto (porque desprovida de consciência humana). Ou seja, a IA não julga, apenas calcula de acordo com sua programação e replica padrões. Ela não interpreta contextos, apenas correlaciona dados. Seu escopo é ampliar efetivamente nossa capacidade técnico-analítica. Portanto, ela não substitui o juízo crítico e a responsabilidade moral que não está consubstanciada em códigos de condutas, em compromissos da sociedade que não está codificados materialmente.

Se for instruída uma IA a redigir um recurso defendendo uma determinada parte no processo, embora eventualmente ela possa se respaldar na legislação vigente e na jurisprudência de um tribunal, ainda assim não há segurança jurídica ou precisão técnica satisfatória para que um operador do direito não submeta o texto à revisão. Isso porque ela pode ultrapassar os limites do pedido, inovar de forma recursal ou ainda indicar precedentes jurisprudenciais inexistentes. Vale dizer, ela até pode eventualmente parecer convincente em sua abordagem argumentativa, mas é juridicamente perigoso arriscar uma construção artificial sem a conferência humana.

Vários episódios atuais, aliás, têm sido relatados quanto a utilização indevida da IA sem a correspondente apuração por um filtro humano. Os próprios tribunais têm advertido que o uso da ferramenta de inteligência artificial pode conter erros (sob a explicação de recente implementação deste processo tecnológico e, por conseguinte, necessidade de contínuos aprimoramentos).

A segurança jurídica, eficiência e confiabilidade das decisões judiciais não são tarefas inalcançáveis. Há ferramentas para mero auxílio. Cabe aos operadores do direito supervisionarem o desenvolvimento e a conclusão do processo decisório tomado a partir de ferramentas de IA.

Nesta crescente demanda de protagonismo judicial, tornando o Judiciário um local de transformação social e, por vezes, um agente politicamente ativo, coloca-se o problema dos limites decisórios tanto em termos formais quanto materiais, como também em relação à suposta substituição das decisões “racionais” por máquinas desprovidas de capacidade de resolução de situações quando não envolvidos parâmetros analítico-objetivos.

 

Não existe fundamento absoluto no mundo do direito (já dizia Norberto Bobbio), inclusive na esfera jurídico-decisória. Subsistem interpretações que só podem ser dirimidas pelo pensamento humano adaptado à experiência ordinária ministrada e com base em tradições culturais ramificadas no tempo.

Numa percepção geral, a máquina é “esquizofrênica”, porque o mundo virtual por ela construído não necessariamente reflete ao presente, nem é dotado de capacidade de produzir informações fidedignas ao que está envolvido dentro e, às vezes, fora do litígio. Somente a mente, ou melhor, a consciência humana pode garantir a lisura e a validade do resultado da produção de uma IA, articulado para o contexto e finalidade pretendidos. O direito é e sempre será uma prática essencialmente interpretativa, que exige dos juízes a busca pela melhor leitura possível do sistema jurídico como um todo. O compromisso com a integridade confere ao direito estabilidade, legitimidade e uma conexão indissociável com a moral pública, tornando-o mais do que um instrumento de dominação estatal, mas um projeto político e moral compartilhado por uma comunidade comprometida com a justiça.

De fato, a seara jurídica gera uma multiplicidade de informações de dados demonstrando ser um campo fértil para aplicações de inteligências artificiais e processamento de linguagem natural. A incorporação da IA na prática jurídica de escritórios e tribunais já é uma realidade sem volta. A IA também pode ser utilizada para fins estratégicos, para pesquisas jurídicas e predições de decisões judiciais a partir de fatos e bases legais. Como visto, deve ser aplicado como aspecto instrumental de performance ao direito para a concretização do processo decisório e da solução dos conflitos jurídicos. Nesse rumo, a tecnologia da inteligência artificial e o Direito estão em uma interligação que já não pode ser negada. Cabe aos operadores e pesquisadores do direito, ao invés de caminhar para o negacionismo encarar este realismo jurídico, compreendendo que a contribuição do uso da IA pelo Poder Judiciário precisa ser feita de forma cuidadosa e adequada, evitando-se violações de direitos e mitigando-se consequências negativas de todas as órbitas.

É possível, pois, verificar que o escopo desta nova realidade é efetivamente uma visão estratégica de complementação ao trabalho humano, no âmbito de atuação paralela, dando suporte para realização das tarefas de uma forma que otimize melhor o tempo dos servidores e dos julgadores, e não adentrando à esfera da solução definitiva do mérito dos casos em substituição completa à capacidade do raciocínio humano. Para melhor visualização, e sob a ótica de alguns doutrinadores, o STF tem sido bastante ativista (a favor da concretização de direitos fundamentais), num avanço compreendido pela perspectiva do papel sociopolítico daquela Corte. Nesse trilhar é possível depreender a participação efetiva e um protagonismo judicial no tocante a julgamentos de matérias que se coadunam, geralmente, com os principais anseios da sociedade. Isso é fruto de uma reflexão e viés de necessidade iminente, onde a tecnologia, por si só, não pode conceber.

O desafio do juiz na sociedade moderna é, com base na lei, sem perder a independência e a liberdade, sintonizar sua consciência com os ideais democráticos que existem na consciência dos brasileiros. Não cabe, enfim, assustar-se com a chamada “ameaçadora mão invisível da IA”, pois o uso da tecnologia convém servir e não substituir o poder decisório advindo da consciência humana. A regulamentação quanto aos cuidados que devem ser tomados é tão essencial quanto a própria utilização da IA.

A justiça continuará sendo humanista e humanizadora, promovida pela mente do julgador, quem pode detidamente propor equidade, equilíbrio, bom senso e razoabilidade, e o melhor paradigma a ser adotado no ordenamento jurídico pátrio é o híbrido, conciliando os instrumentos digitais com o emprego de estratégias de proteção de dados, visando a promoção de uma justiça mais célere e efetiva.

Mais lidas
Encontre a notícia de seu interesse: